Ao realizar as ações indicadas pelo hatha yoga, como as posturas psicofísicas, as técnicas respiratórias e purificatórias; a calma é importante, karma yoga também. O entendimento dessa expressão sânscrita enriquecerá sua prática e irá ajudá-lo a ter uma visão sistêmica e complementar a respeito das diversas frentes de atuação do Yoga.
Palavra por palavra
O vocábulo “karma” deriva da raiz sânscrita kr, que significa agir, fazer e pode ser traduzido por ação. No entanto, seu significado é mais abrangente, a simples tradução não satisfaz o que essa palavra pode representar. As palavras do sânscrito foram desenvolvidas dentro de uma visão de mundo profunda, na qual as inter-retro-relações em todos os níveis da manifestação são consideradas. Dessa forma, a palavra karma assume diferentes sentidos. O determinante, em cada caso, é o ponto de vista do qual observamos as implicações associadas à ação, incluindo a atitude ao realizá-la.
A outra palavra dessa importante expressão sânscrita é “Yoga” e, neste contexto, o seu significado literal é muito pertinente: união, integração. Não no sentido de unir duas ou mais coisas que estejam separadas, muito menos de promover algum tipo de integração. Ela se refere a uma capacidade de ver algo que já existe: a unidade e consequente integração ordenada de tudo. Do nível químico ao planetário, passando pelo físico e biológico, pelo psicológico e social, tudo está integrado e compõe uma Ordem Cósmica.
Essa ordem que abarca todas as leis da manifestação sem estar separado dela é uma das formas da tradição Védica de compreender Deus. O seu nome em sânscrito é Ishvara, que literalmente significa “Aquele que governa”. Esse conhecimento é fundamental para uma compreensão inicial sobre o que é karma yoga.
Isso é karma yoga?
Antes de dizer o que é, é pertinente trazer dois conceitos amplamente difundidos sobre karma yoga. Um diz que significa agir sem esperar resultados, e o outro afirma que karma yoga são ações altruístas. Partindo dessas definições, não seria possível relacionar karma yoga com hatha yoga, visto que no hatha yoga existem expectativas quanto ao resultado da prática das posturas, dos respiratórios, das ações purificatórias etc, além de ser um momento dedicado a nós mesmos, e ainda que se leve em conta que através da prática do hatha yoga acabamos nos tornando melhores para os outros, é evidente que suas ações em si não podem ser chamadas de altruístas.
Considerando dessa forma, teríamos então de dizer que já existem aqui, no mínimo, dois caminhos yogis: o egoísta faz hatha yoga e o altruísta, karma yoga. Seguindo essa lógica, as outras frentes de atuação acabam sendo entendidas como opções isoladas e isso leva a uma compreensão limitada que diz: os mais emotivos deveriam seguir o caminho do bhakti yoga, a abordagem devocional do yoga; os mais racionais, a via do jñaana yoga, que é o caminho do conhecimento; e os introspectivos, o raja yoga, o yoga da mente.
Essa forma de ver satisfaz nossa necessidade de categorizar as coisas e, de certa forma, pode ter serventia didática, porém ela é ilógica. Seria como dizer: “os que tem mais força nas pernas devem seguir a musculação dos membros inferiores, os que tem força nos braços, a musculação dos membros superiores”. Se isso já não faz sentido dentro de uma cultura acostumada a esse tipo de abordagem, o que dizer levando em conta a proposta holística do yoga? Todas essas abordagens são interdependentes e complementares no sentido de possibilitar o autoconhecimento.
Então o que é karma yoga? E qual a sua relação com hatha yoga?
O verso 47 do segundo capítulo da Bhagavadita diz:
“Karmani eva adhikaraste ma phalesu kadacana
Ma karmaphala heturbhu ma te sangostvakarmani“
“Sua escolha é somente quanto à ação, jamais quanto ao resultado. Não queira ser a causa do resultado da ação, tampouco esteja sujeito à inação.”
Partindo dessa explicação de Krshna para Arjuna, podemos dizer que karma yoga se refere a um tipo de atitude no momento da execução das ações – qualquer ação! – e outra atitude em relação a seus resultados. Essas atitudes específicas nascem da compreensão (jñaana) de Ishvara e podem ser chamadas devocionais (bhakti). Delas resulta samacittatvam, uma mente equanime capaz de ouvir, questionar e meditar sobre a natureza do Eu. Ou seja, não decidimos fazer karma yoga de uma hora para outra, essas atitudes se desenvolvem ao longo de uma vida de yoga e vão construindo as bases para moksha.
“Não queira ser a causa do resultado da ação”. Ao dizer isso, Krshna se refere a uma atitude que é chamada, em sânscrito, de ishvara prasaada buddhi e se refere a como lidamos com os resultados das ações. Mesmo sem conhecer essa concepção de Deus que abarca todo o Universo e suas leis, acredito que é fácil compreender que não somos os donos dos resultados das ações, visto que eles dependem de uma série de variáveis que não temos como controlar. Na maior parte do tempo, sequer controlamos os nossos pensamentos.
Apesar desse fato, na medida em que a ciência avança, maior é a sensação de controle, pois aprofundando o entendimento sobre a lógica de funcionamento das coisas, passamos a ser capazes de utilizar essa estrutura inteligente de acordo com a nossa vontade. Mas qual é a origem e a natureza dessa estrutura inteligente, incluindo o funcionamento da nossa mente e do nosso cérebro, os quais possibilitam que a estudemos e sejamos capazes de descrevê-la através de linguagem matemática, textual e simbólica?
Toda essa estrutura da qual fazemos parte, dotada de uma ordenação incrível é Ishvara. Até o que vemos como caos está inserido e compõe essa Ordem Cósmica. Entendendo isso, naturalmente aceitamos todos os resultados, mesmo os indesejáveis como presentes de Ishvara, pois por melhor que realizemos uma ação, todos os resultados sempre dependem Dele. Essa aceitação não significa inércia, como ficou claro na explicação de Krshna, não significa que devemos estar sujeitos a inação. Devemos agir e mesmo após um resultado indesejado podemos aprender com ele e agir novamente para obter o que desejamos, isso se não verificarmos que o resultado, apesar de aparentemente indesejado, satisfaz de alguma forma o que gostaríamos ou ainda podemos descobrir que nem queremos mais o que antes queríamos.
“Sua escolha é somente quanto à ação”. Conforme amadurecemos e compreendemos essa ordem que governa todo o universo, inclusive nós mesmos do jeito que somos, passamos a agir a partir da perspectiva dessa visão do Todo, do Dharma, e não em função apenas dos nossos gostos e aversões. Tornamo-nos mais objetivos e presentes na execução das nossas ações, fazemos o que devemos dentro das nossas possibilidades oferecendo nossas ações a Ishvara, sabendo que ele é “karma phala data“, aquele que dará os frutos da ação. Essa atitude na execução das ações é chamada em sânscrito de ishvara arpana buddhi. Através dela, saímos do jogo de culpa e arrogância face aos fracassos e sucessos, respectivamente. E então, abrimos caminho para um entendimento mais profundo sobre nós mesmos, nos tornamos capazes de conhecer a resposta para a pergunta fundamental: “Quem sou eu?”
E o verso 48 do segundo capítulo da Bhagavadita resume o que foi dito e apresenta o resultado desse entendimento como sendo em si o Yoga:
“Yogasthah kuru karmani sangam tyaktva dhanañjaya
sddhyasiddhyoh samo bhutva samatvam yoga ucyate“
“Estabelecido no Yoga, faça as ações abandonando o apego [ao resultado] e mantenha a mesma atitude frente ao sucesso e ao fracasso, Arjuna. Essa atitude de equilíbrio da mente é Yoga.”
O hatha yoga pode se relacionar de duas formas com karma yoga.
Auxiliando no entendimento de karma yoga
“Para aqueles que vagueiam, por conta da ignorância, pelas diferentes doutrinas considerando-as conflitantes, incapazes, assim, de seguir o Raja Yoga, o compassivo Svatmarama oferece a luz do Hathavidya.” Hatha Yoga Pradipika 1.3
Através das posturas e das técnicas respiratórias e purificatórias, primeiramente, damos inicio a uma série de estímulos que vão além do alongamento e do tônus muscular, melhoramos: a concentração; a respiração; a qualidade e a distribuição do sangue; o funcionamento das glândulas endócrinas; equilibramos tanto a polaridade prânica como a sua concentração nos chakras. Esses efeitos proporcionam uma mente clara, capaz de questionar de forma mais aprofundada sobre si mesma e sobre a realidade que a cerca e de superar os condicionamentos que antes limitavam tanto o nosso olhar como a nossa capacidade de fazer escolhas e de agir. E assim, capazes de ver as coisas como são e de escolher conscientemente as ações, nos qualificamos tanto para ishvara arpana buddhi, como para ishvara prasaada buddhi, para o agir e o receber os resultados em harmonia com o Todo. Sabendo disso, nossa prática deixa de girar em torno apenas do quão bem somos capazes de realizar as posturas, ou por quanto tempo conseguimos reter a respiração, ou por quantas horas conseguimos meditar. A prática passa a se conectar com a nossa vida, o seu dia-a-dia e o viver passa a fazer parte da ponte para moksha, para o entendimento da natureza do Eu.
Já com o entendimento de karma yoga
À medida que essa objetividade mental é conquistada, associada à exposição e à compreensão do conhecimento de Ishvara, a própria prática de hatha yoga se torna uma expressão de karma yoga e se transforma numa espécie de ritual onde você se relaciona com o Todo. A conhecida e tradicional Saudação ao Sol é um bom exemplo de prática de ásanas com esse entendimento, nessa sequência de posições fazemos reverência ao Sol reconhecendo ele como uma peça fundamental dessa Ordem Cósmica da qual dependemos e fazemos parte. Levando essas considerações em conta, além de enriquecer nossa prática, seguimos nossa jornada nos aproximando cada vez mais do objetivo do yoga: a resposta para a pergunta: “Quem sou eu?” que quando respondida trás consigo a liberdade em relação à sensação de limitação e o encontro com a felicidade que tanto buscamos.
Om
Por Gilberto Schulz
Republicou isso em IYENGAR YOGA BLOG.
O homem só pode viver, se agir. Quando age, o homem está escolhendo, a cada instante, o que será de sua vida no instante seguinte. Desse ponto de vista, o homem é muito poderoso, porque parece dono do próprio destino. Porém, ao mesmo tempo, e apesar das escolhas que faz, o homem percebe rapidamente que a configuração de sua vida, no momento seguinte à ação, não depende apenas dele. Feita essa observação, o homem parece ser muito menos poderoso. Ele se vê obrigado a desistir da ideia de controlar a própria vida. Na filosofia ocidental, alguém formulou o conceito de angústia para traduzir essa incompatibilidade entre ações e resultados. O homem, supostamente, ficaria cada vez mais angustiado sempre que suas expectativas fossem frustradas. Na tradição védica, o conceito de angústia some, porque existe a compreensão de Ishvara. Ishvara nos ensina a agir considerando o Todo, e não apenas nossas vontades. Conclusão: entender e aceitar Ishvara é o caminho para uma vida livre de angústias e ansiedades.
Ótima reflexão, Rafael Mendes! Om
Parabéns Gliberto pelo texto.
Certamente tanto a pratica de asanas ,quanto qualquer coisa que façamos em nossa vida tem outro sentido quando existe a atitude de entrega a Ishvara ou de reconhecermos a benção de Ishvara.Daí a importância de conhecermos o verdadeiro sentido de Karma Yoga .
Harih OM
Annabella
Obrigado, Annabella! Pelo comentário e por ter sido uma das responsáveis por me apresentar e me fazer compreender esse conhecimento. Harih Om
Parabéns pelo ótimo texto. Me ajudou bastante!!! Namaste